Filhos - África, identidade racial


O presente texto analisa cartas e registros autobiográficos do jurista Antônio Rebouças (1798-1880) e de seu filho, o engenheiro abolicionista André Rebouças (1838-1898) no Brasil do século XIX. Tais escritos são expressões eloquentes de subjetividades racializadas pela presença da escravidão africana na sociedade brasileira do período. Marcados por sua cor como descendentes de escravos – foi como “pardo livre” que Rebouças pai foi registrado pelo pároco no livro de batismo da paróquia de São Bartolomeu, na vila de Maragogipe, na província da Bahia1 –, ambos tiveram, apesar disso, uma vida política e intelectual bem sucedida e influente no Brasil oitocentista. O texto interroga, sobretudo, o lugar da África e da noção de raça em seus escritos pessoais.

2Concepções de raça diferentes da acepção oitocentista do termo já se faziam presentes no mundo colonial sob a égide da expansão ibérica. Nos impérios ibéricos, os chamados estatutos de pureza de sangue, de base religiosa, implicavam em uma noção de “raça” associada ao estigma de uma origem não cristã (pagã ou herética). No século XVIII, as reformas pombalinas revogaram as restrições aos descendentes de judeus, mouros e indígenas no Império português, mas as relativas aos descendentes de africanos se manteriam nas colônias escravistas, para só serem rompidas após a independência do Brasil, pela Constituição de 1824 (Carneiro, 1988, p. 57; Mattos, 2000 e Mendes, neste volume).

3Para os chamados “livres de cor”, praticamente a metade da população livre do Brasil ao final do período colonial, efetivar os novos direitos não parece ter sido fácil. Nos anos que se seguiram à independência, proliferaram no Rio de Janeiro jornais liberais, chamados exaltados, com sugestivos títulos como O homem de corO Brasileiro PardoO Mulato ou O Cabrito – todos arguindo sobre igualdade de direitos entre os cidadãos brasileiros, independente da cor, garantida na Constituição. Radicais liberais, em nome do direito de propriedade, reconheciam uma legitimidade não racializada para a continuidade da propriedade escrava no país, mas defendiam a igualdade civil entre os cidadãos. No Brasil, diziam, “não há mais que escravos ou cidadãos” e, portanto, “todo cidadão pode ser admitido aos cargos públicos civis e militares, sem outra diferença que não seja a de seus talentos e virtudes”.

4Na prática, a cor mantinha-se como estigma, marca da escravidão presente ou passada. Cidadãos brasileiros não brancos continuavam a ter até mesmo o direito de ir e vir dramaticamente dependente do reconhecimento costumeiro da condição de liberdade. Fora de suas redes de relações, ficavam sob suspeita de serem escravos fugidos – sujeitos, então, a todo tipo de arbitrariedade, se não pudessem apresentar carta de alforria. Se fossem tomados por libertos, teriam seus direitos políticos drasticamente restringidos. A produção epistolar e autobiográfica dos dois Rebouças se faz em diálogo com tal contexto e tomará, desde o pai, a África e o racismo como objetos de reflexão.

5A concepção “científica” de raça e da desigualdade entre elas foi uma construção do pensamento ocidental surgida em meados do século XVIII, contemporânea, portanto, ao surgimento das noções de cidadania e direito dos homens no contexto das revoluções atlânticas. A partir da primeira metade do século XIX, especialmente nos Estados Unidos, até mesmo a origem comum da espécie humana começou a ser questionada (poligenismo). Desde então, durante todo o século XIX, a partir de uma argumentação biologizante, as teorias raciais permitiriam novamente naturalizar algumas das desigualdades sociais, as que incidiam sobre grupos considerados racialmente inferiores, justificando restrições aos direitos civis e políticos inerentes às novas concepções de cidadania, bem como a nova expansão colonialista europeia sobre a África e a Ásia. A propagação de tais ideias no Brasil (e na América Latina de uma forma geral) se fez sobre o solo comum das hierarquias raciais de tipo antigo, ainda muito presentes na experiência cotidiana, ainda que tornadas ilegais pelos novos estados nacionais que então se formavam. Nesse contexto, o sentido marcadamente biológico das novas teorias produziria, num sentido mais específico, algumas leituras positivas da mestiçagem, desde que tendentes ao branqueamento da população (Schwarcz, 1993, cap. 2).

6Intelectuais liberais, pai e filho nadaram contra a corrente. Afirmaram a igualdade da “raça humana” e a capacidade de civilização da África e dos africanos em seus escritos e em sua atuação política. A convicção na capacidade de civilização da África e dos africanos, apesar das reiteradas referências à barbárie em que aquele continente se encontrava, é um traço de continuidade no pensamento de ambos. Em Rebouças pai, a convicção na capacidade de civilização do africano “bárbaro” estaria na base de sua defesa, no Parlamento, da colonização com africanos livres como solução para os problemas de mão-de-obra do país. Em Rebouças filho, acabaria por levá-lo ao continente africano ao final da vida.

  • 2 Segundo o Slave Trade Data Basis, cerca de setecentos e cinquenta mil escravos entraram ilegalment (...)
  • 3 Para uma discussão sobre as iniciativas para evitar a continuidade da imigração africana para o Br (...)

7Em 1830, antes ainda da proibição legal do tráfico atlântico de escravos, o Parlamento brasileiro aprovou uma lei sobre o trabalho por contrato de estrangeiros no país, que proibia expressamente a contratação de “africanos bárbaros” (FCRB, 1982, Lei de 31 de setembro de 1830, p. 295-296). Em 1846, em plena crise com a Inglaterra em torno da continuidade do tráfico ilegal de africanos escravizados para o Brasil, Antônio Rebouças, eleito deputado pela província da Bahia, discursou no Parlamento saudando a Inglaterra (30/5/1846) e propondo a revogação da lei de 1830 para permitir a introdução de africanos como colonos livres no país (6/6/1846) (FCRB, 1982, p. 266-268 e 294-296). O recrutamento de tais colonos livres em África, sobretudo para o Caribe inglês e francês, conforme podemos acompanhar no capítulo de Celine Flory neste livro, esteve muitas vezes apoiado no resgate/compra de cativos nos mercados de escravos africanos. Apesar disso, a imigração espontânea não era impossível e Rebouças considerava a situação então vigente no Brasil, em que se compactuava com o tráfico clandestino e com a escravização ilegal, muito mais grave2. Para o contexto brasileiro da época, não há dúvidas de que o racismo, associado no país a projetos de branqueamento da população, informava o principal divisor de águas entre opositores e os (poucos) defensores da colonização africana no Parlamento3.

8Os processos de racialização daí decorrentes são diversificados e precisam ser contextualizados historicamente, mas fabricavam a raça também como construção social fundadora de processos de subjetivação e de identidades coletivas (Cooper, Holt e Scott, 2000, Introduction). Neste texto, procuro agregar a dimensão subjetiva da experiência de discriminação racial ao contexto sociopolítico, para analisar a construção de si do conselheiro Rebouças e de seu filho André. Para tanto, inspirada em Fredrik Barth, ao invés de utilizar o conceito de raça, prefiro pensar em racialização, de modo a enfatizar o caráter dinâmico, relacional e fundamentalmente não essencialista dos processos de classificação e identificação racial vividos pelos dois personagens (Barth, 1969).

O pai

  • 4 Para uma abordagem ampla da biografia do conselheiro Rebouças, com ênfase na sua carreira jurídica (...)

9São abundantes os registros autobiográficos existentes sobre o conselheiro Antônio Rebouças, título que recebeu diretamente do imperador dom Pedro i4. Ele escreveu mais de uma autobiografia e boa parte de seus documentos pessoais – incluindo a correspondência passiva – estão arquivados na Coleção Antônio Pereira Rebouças, na sessão de manuscritos da Biblioteca Nacional.

  • 5 Na p. 165 da versão publicada de seu diário, André Rebouças escreve: “Continuei e terminei à noite (...)

10O conjunto de documentos, ao que tudo indica, foi organizado pelo próprio Antônio, com o auxílio do filho André, editor do único livro de memórias publicado pelo conselheiro em 1879 sobre as recordações da vida patriótica5. Não há informações precisas, mas, provavelmente, a coleção foi doada à Biblioteca por André Rebouças, o que torna a memória pública do pai, em grande parte, também uma construção do filho. A coleção documenta títulos e honrarias conquistados ou recebidos pelo conselheiro e sua correspondência passiva de caráter oficial. A habilitação para advogar em todo o país em 1847, a participação na Junta Provisória do município de Cachoeira nos episódios da independência da Bahia, a nomeação para secretário da província de Sergipe em 1824, a comenda de oficial da Ordem Imperial do Cruzeiro em 1842, a participação no Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro (IHGB) e em outras sociedades civis ficam devidamente comprovadas, bem como o alto prestígio social de seus correspondentes. Além disso, ela guarda quatro textos manuscritos de caráter autobiográfico (Coleção Antônio Pereira Rebouças, 1868).

  • 6 Quase todos os nomes de amigos e adversários citados no texto são acompanhados de uma pequena refe (...)
  • 7 Os demais textos autobiográficos arquivados na Coleção são bem menores e se estruturam mais como (...)

11Trabalho especialmente neste capítulo o primeiro e o mais extenso desses textos, intitulado Biografia do advogado conselheiro Antônio Pereira Rebouças, com sessenta e seis páginas manuscritas. Em mau estado de conservação, o documento não é datado e a narrativa autobiográfica encerra-se abruptamente, com o relato dos eventos sobre a repressão da Sabinada, revolta liberal ocorrida na cidade de Salvador em 1837. Tudo indica que foi escrito durante a própria rebelião ou logo após ter sido sufocada6. Os mesmos acontecimentos seriam revisitados no único livro de memórias publicado pelo conselheiro, Recordações da vida patriótica do advogado Rebouças: compreendida nos acontecimentos políticos de fevereiro de 1821 a setembro de 1822, de abril a outubro de 1831, de fevereiro de 1832 e de novembro de 1837 a março de 1838. Livro publicado como “memórias ditadas por Rebouças em agosto de 1868 já então sem vista para ler e escrever”, mais de quarenta anos depois. Nele, o autor manteria sua convicção de que os acontecimentos vividos nas décadas de 1820 e 1830 não deviam ser esquecidos. É basicamente o cotejo entre a narrativa de 1838 e o texto publicado no final da vida que proponho enfatizar7.

12Ao cotejar a rememoração imediata do texto de 1838, que se fez quase como balanço, com a construção das memórias publicadas com a intermediação do filho, quando “os contemporâneos aos acontecimentos políticos havidos na capital e Província da Bahia [...] vão se finando, e os que ainda não se passaram desta à vida eterna, têm de sobreviver aos outros por pouco tempo” (Rebouças, 1879, prefácio) é possível mapear continuidades e mudanças no contexto sociopolítico e nas visões de mundo do conselheiro e de seu filho.

13No rol das diferenças mais significativas entre os dois textos estão as simpatias republicanas do conselheiro em sua juventude. Na Biografia, a origem do liberalismo do velho Rebouças se constrói associada ao impacto das repercussões, na Bahia, da experiência republicana da revolução pernambucana de 1817 em seu “sentimento patriótico e de amor à liberdade”. A ligação cada vez mais forte do pai e do filho à monarquia constitucional provavelmente pesou para a supressão dessa menção no livro publicado.

14A família e a vida doméstica entram de maneira quase protocolar no conjunto dos escritos autobiográficos, acionadas principalmente para ilustrar a origem humilde do autor e o caráter autodidata da sua formação intelectual.

15Mas há uma radical diferença entre os dois textos. Com bela folha de rosto manuscrita, a Biografia do advogado conselheiro Antônio Pereira Rebouças tem o texto construído a partir de episódios diferentes e sucessivos em termos cronológicos, organizados a partir de um mesmo modelo narrativo, de tom quase épico, em que o preconceito racial ocupa papel de destaque. Na publicação de 1879, a identidade racial do narrador tornou-se completamente ausente.

16Em finais dos anos 1830, o conselheiro Rebouças estava concluindo a fase heroica da sua vida pública. Em 1837, a eclosão da Sabinada, revolta federalista liderada pelo médico mulato liberal exaltado, Francisco Sabino, empolgou as massas de cor livres da cidade de Salvador. Ela prometia alforria aos escravos crioulos que se engajassem na defesa da revolução, que foi derrotada após violenta repressão pelas forças do governo central estabelecido no Rio de Janeiro em princípios de 1838 (Kraay, 1992 e Grinberg, 2002, cap. 4). Antônio Rebouças esteve desde a primeira hora em oposição à revolta e, após a vitória das forças legalistas, disputou a memória dos seus significados políticos, esforçando-se por desracializá-los. Com este objetivo, na narrativa de 1838, sua cor e os preconceitos que sofrera tornam-se quase fios condutores.

17Sua viagem ao Rio de Janeiro após a vitória dos patriotas na guerra de independência em 1823 pouco rende nas Recordações, para além da sua condecoração como cavaleiro da Ordem Imperial do Cruzeiro. Na Biografia, dá início a um ciclo narrativo de mais de oito páginas, nas quais as experiências de discriminação racial que sofreu durante a viagem, em uma Bahia ainda conflagrada que lhe exigia a toda hora provar que era homem livre e importante, ocupam um lugar de destaque. Ao chegar ao Rio de Janeiro, registra a discriminação de conterrâneos baianos que se recusam a convidá-lo para um jantar para “não ofenderem seus convidados brancos e nobres”. A condecoração pelo imperador fecha o relato, marcando a vitória do narrador sobre os inimigos que haviam tentado humilhá-lo.

18Rebouças deixou o Rio de Janeiro nomeado pelo imperador secretário da província do Sergipe. Nem uma palavra sobre o período que passou naquela província aparece registrado nos textos biográficos da maturidade. O assunto merece, entretanto, mais de cinco páginas em letras miúdas e praticamente sem parágrafos na Biografia, engendrando mais uma saga do agora secretário Rebouças contra a aristocracia local. Segundo a narrativa, os poderes locais do Sergipe não aceitaram bem a chegada do presidente da província, nomeado pelo imperador, juntamente com seu secretário “que era quem de fato governava a Província”. Juntos, presidente e secretário juraram a Constituição, lida no adro da igreja matriz por Rebouças, e atraíram a ira dos antigos poderes locais, incluindo a oficialidade de primeira linha. Segundo Rebouças, com o apoio da tropa e um pouco de astúcia, ele conseguiu frustrar um plano para derrubar o presidente da província. Em função disso, se viu envolvido, nada mais nada menos, em acusações de “haitianismo” das quais teve que se defender judicialmente.

19O fantasma da associação dos livres de cor com a população escrava em um levante republicano e abolicionista como na independência do Haiti assombrava as elites brasileiras. Anos depois da acusação contra ele em Sergipe, ainda que em sentido inverso, o próprio Rebouças viria a lançar mão de tal medo, em discurso na Câmara dos Deputados contra tentativas de impor restrições legais para a ascensão de ex-escravos à oficialidade da Guarda Nacional, instituição criada em 1831 (FCRB, 1982, discurso proferido em 25/8/1832, p 200-202). No discurso, considerava Toussant Louverture “mais cidadão e francês que o próprio Napoleão que o fizera perecer”. Para ele, caso fossem cumpridos antigos éditos da monarquia francesa, que consideravam

franceses e capazes de todos os empregos e ocupações os libertos da colônia [...] certamente os colonos refratários e obstinados não sofreriam tanto, nem teriam lugar as cenas de horror e de atrocidade que fazem arrepiar as carnes apenas se nos afiguram à imaginação [...] Mas, enfim, todos os meios reconciliatórios foram perdidos, e os colonos na rainha das Antilhas, como o clero e a nobreza na França, por nada quererem ceder, sem tudo ficaram...

20Mas, nos acontecimentos do Sergipe, era ele o acusado de haitianismo! De acordo com o relato da Biografia, um tenente do regimento de milícias de “uma companhia de Henrique Dias”, ou seja, uma companhia formada por ex-escravos, “um crioulo moço de maneiras um tanto desembaraçadas” o teria procurado com planos de reforma militar. O texto é especialmente lacônico sobre o conteúdo das tais reformas, mas pode-se supor, pela referência ao regimento dos henriques, que o fim da segregação das tropas de linha fizesse parte da proposta, para a qual Rebouças escreve ter dado “pouca importância”. Segundo a própria narrativa da Biografia, não foi esta a impressão relatada pelo tenente a seus subordinados. Esta era uma reivindicação antiga das populações livres de cor, contemplada em tese pela Constituição de 1824. A Constituição imperial suprimia, para os cidadãos brasileiros, as antigas diferenças de “qualidade” a partir da raça ou da cor, próprias ao Antigo Regime português. Não eram infundadas, portanto, as esperanças de reforma militar do “crioulo moço e desembaraçado” que se dizia apoiar em palavras ouvidas de Rebouças. Na Biografia, Rebouças se declarou obrigado a pedir demissão do cargo para cuidar de sua defesa, sem se alongar mais no tema. Nos autos do processo contra ele, os proprietários rurais que o acusavam chegaram a chamá-lo de “miserável neto da Rainha Jinga”, em uma referência à legendária rainha angolana que dera combate aos portugueses no século XVII, ainda que Rebouças não registre isso no seu texto (Grinberg, 2002, p. 92, nota 33). Na verdade, em termos narrativos, os episódios do Sergipe dão início, no texto de 1838, a uma saga de perseguições políticas, das quais Rebouças teria sido vítima ao lutar contra os interesses aristocráticos e absolutistas, o que acabou por levá-lo à prisão quando era redator do jornal O Constitucional em Salvador. As perseguições só cessariam com o fim do Primeiro Reinado e sua eleição para a Câmara dos Deputados em 1831, no início do PERIODO rEGENCIAL

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